10/05/2010

Pseudos - Parte 1



Despertador ecoa no quarto e mais um dia de trabalho árduo se inicia. Não demoro em levantar. “Faz tempo que não enrolo na cama...” – constato. Após uma ducha rápida e vestir a roupa de operária; terno muito bem passado e sapatos limpos; saio de casa. Mal chego ao escritório e já existe uma pilha de processos para serem vistos, clientes querendo ser atendidos, advogados com uma série entraves para serem resolvidos. “Nunca quis tanto tirar férias”. Sento em minha mesa e no primeiro espanto, já passam do meio dia. Alguém me sugere sair p almoçar. “O mundo não vai parar para que eu almoce...!”. Num segundo espanto, a tarde caiu. De tão exausta, estou quase que dormente e o cansaço do dia só irei sentir quando tudo parar.

As 8 da noite desligo o computador, ajeito a montanha de papéis sobre a mesa e olho pela janela. Recordo-me que, ao comprar aquela sala eu não estava muito satisfeita, o local era meio a ermo. Naquela noite, enfim, notei que não era mais. A vizinhança era formada por outros prédios comerciais e vários bares, todos com seus letreiros de happy hour. Fui saindo, observando todas as salas e mesas procurando na memória resquícios de quando havia sido meu último chopp depois do trabalho. “No final do ano...? Não. Meu aniversário. [pausa] Putz,.. não.”

Saio da sala, vou logo em direção ao elevador e aperto o botão. A cada minuto mais chateada com a vida sem graça que eu tinha, saio do transe com o barulho do elevador se abrindo. Entro. Estava cheio de inimputáveis. Havia muito tempo que eu não via tantas espinhas, aparelhos e chicletes juntos. Com tanto barulho e baderna, oito andares pareciam oito milhas. Olhei para o lado em busca do espelho para avaliar minha máscara de gente e um ser destoa naquela caixa. De corpo franzino, calça e camiseta largar, All Star surrado parecido com o que havia jogado fora tempos atrás. Me recriminei; “Ridícula. Possível pedófila.” Ri de canto de boca. Não sei como, mas consegui ouvir aquele risinho no meio da bagunça. Estico os olhos e percebo que fui surpreendida. Aquele rosto fino de mancebo, pálido sobre um par de ombros ossudos me encarou. Desviei os olhos. Ameacei fitá-lo novamente e estava distraído com o mp3. A boca era rosada e delicada. “Muito andrógino”.

A porta se abre. Os outros fedelhos saem e se despendem do mancebo que só acena com a mão. Lisonjeiro, segura a porta para que eu saia. “De qual século ele deve ser mesmo...?”. Apenas, aceno com a cabeça, dou-lhe um sorriso discreto e saio. Com passos largos e leves, mesmo vindo depois de mim, ele me ultrapassa e vara a portaria. Parada na frente do prédio, o acompanhei atravessar a avenida, falar com uns e outros, caminhar mais um pouco e logo adentrar um bar. “Chopp...? Não. Seria demais.”. Apesar de cogitar a investida no rapazola, não soava muito bem me interessar por um garoto que pode ter a idade de meu irmão caçula. Conclusão do momento: desespero, solidão e ser workaholic fazem muito mal a sua vida sexual. Deixando de ser membro da segurança do prédio, dou uns dez passos e chego ao meu carro. “Casa. Urgente.”

Em casa, ligo as luzes, jogo pasta, bolsa, deixo os sapatos como quem faz o caminho de João e Maria. Depois de um bom banho, ligo pro japonês que fica na esquina para me trazer algo. Deitada, esperando meu jantar chegar, o telefone toca. Era minha irmã alertando-me de que eu jamais fora órfã, mas caso fosse necessário, esqueceriam de mim. “Oi, Marília. [pausa] É, fiquei de ligar... Mas, não deu. [pausa] Ahn, não sei, Ma... tô tão cansada. E os meninos? [pausa] Ok. E não vai querer mesmo que eu providencie a sua litigiosa daquele babaca...? (risinho irônico) [pausa] Ainda bem que é seu. Então, tá. Beijo pra mamãe. Tchau.” Telefone desligado. A procura se deu por conta de um almoço de família, daqueles que todo mundo pode um dia ter; casa cheia, comida o suficiente para te deprimir, primos e irmãos casados, com seus cônjuges, crias e, a velharia e os desagradáveis perguntando quando você vai conseguir ter alguém e construir uma família. “Mas, quando eu quis mesmo ter uma família...? Pensei que já tivesse...” – questionei. O japonês chegou. Comi e dormi.

A manhã chegou e lá estava eu já dentro do carro, dirigindo no piloto automático, organizando as tarefas do dia na cabeça e buscando uma vaga em frente ao prédio. Inexplicavelmente, um vulto atravessou na minha frente. Num freio brusco, cantei pneus enquanto o infeliz espectro já estava na calçada. “Poderia morrer pra me poupar de sair pra matá-lo agora.”- resmunguei depois de uns palavrões. Quando o ódio se esvai um pouco e me permite olhar direito para a calçada... “Ah, moleque dos infernos!”. Quando pensei em sair, ele já estava ao lado do carro, batendo no vidro da porta. “Desculpa... ” – falou com a voz rouca. Desci e firmemente, afirmei que da próxima faria questão de esquecer dos freios. Riu e me desconsertou ao dizer que eu não possuo cara de quem esqueceria dos freios. “Debochado.” Calada, mas com o rosto em chamas, entrei no carro e fui estacionar.

No hall do prédio, o projeto de homem me aguardava conversando com o segurança. Enquanto eu esperava o elevador vir do além, colocou-se ao meu lado e me inquiriu, querendo saber como poderia se redimir. “Sumindo...?”. Falei por falar, pois, era ele quem iria morrer mesmo... E, além do mais, o perfume do cretino era ótimo. Havia muito tempo que eu não prestava atenção no perfume de um homem. O elevador chegou, entramos. Fomos mudos até o oitavo andar. Antes que se fechasse a porta, ele sorriu encantadoramente. “Pronto. Só me faltava agora dar brecha pra um fedelho.”

O dia de cão passou que nem vi. Depois de ameaçar desfazer sociedade, de ameaçar demitir gente, de ameaçar mandar tudo pelos ares e me defenestrar, soou o gongo. Eu já estava no escritório só quando estranhei tocarem a campainha. Levantei e de longe pude ver uma silhueta lânguida e esguia na porta de vidro jateado. Abri a porta. Na soleira, estava o projeto de cadáver daquela manhã. Olhei para ele curiosa. Desculpou-se por bater no escritório naquela hora. Continuei ouvindo. “Posso te pagar uma bebida pelo que aconteceu hoje?”- perguntou direto. Pedi que aguardasse. Fechei a porta, voltei a minha sala, avaliei a pilha de coisa que ficaria por fazer. “Bem,... o que pode me acontecer de mais...? Amanhecer numa sarjeta esquartejada...?”. De bolsa no ombro direito e séria, saí, tranquei a porta. Ele me acompanhou. Pegamos o expresso elevador, pois, àquela hora poucos ainda estavam no prédio.

Na calçada, paramos. Olhou-me como quem pergunta para onde iríamos. “Você me convidou. Escolha.”. Ele esboçou um sorriso e todo dono de si, disse para atravessarmos a rua. Andando pela calçada cheia de transeuntes, aquele corpo frágil encontrou-se com o meu algumas vezes. Até hoje não sei se, o que sentia por conta dos esbarros era frisson ou agonia. Não demorou muito para entrarmos no mesmo bar no qual o vi entrar na noite anterior. O lugar era simples, mas com seu charme. Rock da minha época tocando, mesa de bilhar, garçonete por todos os lados. Sentamos. Acenou para uma das moças e pediu um chopp. “Dois”- corrigi. Após pedir, peguei-o me observando como se estivesse surpreso; talvez esperasse que eu pedisse um Martini, sei lá. “O que foi? Advogada também é gente, bebe e se deixar, bebe muito.” Sorrimos.

O chopp chegou. Tomei o primeiro gole e fiquei brincando com o degelo do copo. Ele comentou, tentando puxar assunto, que sempre me via entrar e sair do prédio com pressa. Falou do jeito sério como ando, da expressão sisuda do rosto. “A vida corre diante dos meus olhos e eu preciso, no mínimo, tentar alcançá-la. Não posso perder tempo.” Silêncio. Após um gole longo, perguntou-me se de alguma forma eu não estava perdendo tempo. “Faz sentido. Mas, não há como voltar atrás. Inês é morta...!” – respondi com um risinho, porém, não transparecer que ele havia pisado em território delicado era impossível. Sensível, notou o que aconteceu e desculpou-se. Estiquei um riso de canto de boca e o repreendi por tantas desculpas. Encarou-me e era impossível naquele momento administrar a sensação de, depois de anos, ser vista por alguém com olhos como os dele; curiosos, ansiosos, desejosos, como se pudesse passar a noite ali comigo, apenas me olhando. Enrubesci. Rimos.

Aproveitei a descontração e me apresentei. Nos demos as mãos num cumprimento. Perguntei seu nome. Silêncio. “Seu nome é feio...? Não tem problema... Deve ter um apelido...!”. Riu antes de virar a tulipa. “Cecília. Meu nome é Cecília.”

4 comentários:

Srta. Macon disse...

O que mais me deixa feliz é saber que um dia tive o privilégio de te conhecer, e msm de longe acompanhar sua evolução é mto gratificante!!! És uma linda e talentosa poetisa e de certo uma viril amante!!! Parabéns, continue escrevendo sempre assim!!! Adoro-te!!!

Tuanny Soeiro disse...

Engraçado, a primeira coisa que eu pensei logo de início foi: "qual o gênero da personagem?". De resto, adorei a leitura. Flui com muita naturalidade, apesar de diferente. Tenho a impressão de que acompanho, lado a lado, os passos da protagonista. Muito bom ;)

Comércio de Sonhos disse...

:0 aaaaaaaaah.. quero cenas do próximo capítulo... e logo por favor.. nao me faça esperar uma semana..

o texto.. Envolvente, como ja havia lhe dito...

digamos que é uma volta em grande estilo!!

parabéns campeeeeeelo!!
bju

Leo disse...

Zig, Zig... Gostei do seu estilo narrativo. Seu texto é bastante envolvente. Continue assim, ou 'keep walking', como diria Johnny. ;)

Bjusss
L.