14/05/2010

Pseudos - Parte 2

“Cecília. Meu nome é Cecília.” Não pude esconder minha perplexidade; meus olhos falavam e meu silêncio ensurdecia. Cecília ficara constrangida com minha surpresa, balançava a perna direita compulsivamente, apertava as mãos. Na tentativa de engolir a revelação, entornei metade da minha tulipa. Era impossível dizer algo. Ali foi só o início da minha confusão.

Apesar de desconfortável, também não concebia deixá-la constrangida. “Quem sou eu para julgá-la?” Uma garçonete passou, acenei para ela. Vendo meu gesto, Cecília comentou que talvez fosse melhor mesmo fecharmos a conta. Não sabia ainda porque, mas... “Só se você quiser... por mim, continuamos a beber.” Ela olhou-me como quem nada entendia. Com a aproximação da garçonete, pedi mais dois chopps.

Voltando ao nosso estado de silêncio, fui observá-la. Sim, era uma menina. “Eu estou cega, doida ou desesperada demais...?” – indaguei-me. Cecília tinha a pele alva, as mãos finas de dedo longos, unhas redondas, bem feitas, protegidas por base. A calça jeans que vestia, de fato, possuía o corte masculino, porém, olhando com mais cuidado, era capaz perceber um quadril saliente naquele balão. Ela riu quebrando meu momento de análise. “Desculpa,... estou me questionando como não havia percebido antes.” Inaugurando seu segundo chopp, afirmou sempre passar despercebido. Curiosa, quis saber o real motivo para a transformação.

“Nunca me senti menina. Toda aquela parte da infância com bonecas, cabelos longos, vestidos,... nunca existiu. Desde que pude optar pelas coisas, busquei o universo masculino. Não sei por que ao certo, mas adorava os carros do meu irmão, suas roupas, brincar com seus amigos, jogar bola,... Minha mãe tentou de todas as formas me convencer a me portar como uma legítima “filhinha da mamãe”, apelando até para a surra volta e meia. Entrando na adolescência tudo tornou-se mais complicado. Enquanto todas as meninas entravam na fase da vaidade, eu andava de bermudas e jogava vídeo game. Não que eu não seja hoje vaidosa... mas, a minha vaidade é como a vaidade masculina. Mudei de escola por incontáveis vezes, pois, ou eu era agredida ou, a própria escola exigia que eu mudasse. A esta altura, minha família já não me pressionava. Assimilaram meu jeito e pronto. Assim, eu era protegida. Lembro de minha mãe dizendo ao meu pai que, sempre buscaria o melhor para mim, mesmo que eu tivesse que passar por todas as escolas do país. Enfim, consegui terminar o colegial e passei no vestibular para letras. Na universidade foi tudo tão diferente... Passei por menos percalços que na fase escolar. Demorei a me acostumar com o fato das pessoas me respeitarem e a fazer amigos. As festas aconteciam e eu era chamada, as pessoas com quem me formei eram legais e me respeitavam. Só voltei a enfrentar problemas novamente após minha formatura, quando precisei procurar emprego. É complicado demais dizer seu nome delicado com uma aparência de moleque...! Para minha sorte, uma professora soube que eu estava passando esta dificuldade e me contratou. Dou aula no curso de idiomas que fica no andar acima do seu. Com o dinheiro que ganho, ajudo meu irmão a sustentar nossa casa, pois, não tenho mais pai.”

Ouvi pacientemente tudo que ela se sentiu confortável em dizer. Ao término, não tinha o que falar. Cecília me incentivou a dizer algo. “O que eu posso dizer...? Que tenho vergonha da minha história, porque eu sou a legítima “filhinha da mamãe”...?” Rimos. Comentou que eu não demonstrava ser mimada. “Sempre que te olho, sinto vir de você uma força imensa. É difícil acreditar que você foi mimada.” Ela me desconsertou. Rimos. De certa forma sempre lutei pelas minhas coisas, lutei por minha emancipação, pela minha graduação, pelo mestrado, pelo meu escritório.

Só sei dizer que as horas voaram enquanto eu conversava com Cecília. Aquela menina-mancebo não era nada frágil. Trazia consigo mais bagagem que eu; mais velha e, teoricamente, com mais estrada andada. A cada novo detalhe exposto, eu me via mais presa a sua história. A cada cerveja trazida eu me via mais solta e desenvolta. Quando dei por mim, já passava das duas da manhã, o bar estava sendo fechado, estávamos sendo varridas do local e ríamos como se não houvesse amanhã. Pedimos a conta; rachamos, pois ela, como um verdadeiro gentleman não me deixou pagar tudo sozinha. Saindo do bar, ofereci-lhe carona.

Durante o percurso, inquiriu-me sobre minha vida amorosa. “Uma palavra define tudo: fracasso. Tive alguns relacionamentos. Com um eu quase casei, mas ele ficou com medo da mulher que sustentava a casa. Desistiu meses antes da cerimônia. Ainda tentei com uns, mas nada sério... mero sexo para distrair. Minha família diz que fiquei traumatizada...! (riso irônico) A verdade, é que parei de procurar... não tenho tempo para ir a caça e, quando aparece, não é alguém que me inspire grandes sentimentos.”.

Estava na porta de Cecília quando acabei de falar. Ela agradeceu a noite, argumentando haver muito tempo que não saía com alguém e se divertia tanto. Impliquei, dizendo ser mentira, pois ela é encantadora. “É,... mas, nem todas agem como você ao descobrirem se sou uma mulher...”. Em seguida, aproximou-se para se despedir dando-me um beijo no rosto. Quanto mais perto ela estava, mais forte era seu perfume apesar das tantas cervejas que tomamos. “Seu perfume é bom...” – comentei enquanto ela já se afastava de mim. Cecília ficou sem jeito e eu, me condenando por ter pensado alto demais. Desceu do carro e, antes de bater a porta, revelou que jamais esquecera o meu desde aquele encontro no elevador. Porta batida e eu querendo me fundir com o volante. Fiquei esperando que ela entrasse em casa para poder partir.

No caminho para casa, meu estômago embrulhava e a cabeça girava. “Merda, acho que to bêbada.”. Cheguei em casa, tomei banho e cama. Acordo com o celular tocando. “Dra., já são dez horas da manhã... o ‘agradável’ do seu sócio já ligou mil vezes, sua mãe também ligou... ela já tá ligando pros hospitais atrás da Sra. ...” – era Ana, minha secretária. Dei um pulo da cama. A cabeça pesava; resultado de muito tempo sem beber. Desliguei o telefone, tomei um banho, pus a farda de operária e saí. Indo para o escritório, liguei para minha mãe. “Oi. [pausa] Tô bem, mãe... Nada de mais. [pausa] Não, mãe. Já falei que não aconteceu nada. [pausa] A sra. pode parar de dar chilique?! Não posso pegar um porre e perder a hora?!”. Enfim, ela lembrou que sou dona do meu nariz.

Já no escritório, o barulho era infernal. Ana me olhou como se adivinhasse meu estado. Veio atrás de mim com café preto bem forte. “Sua mãe ligou dizendo seu estado...!”. Encarei-a com ódio. Pedi que não passasse nenhuma ligação para mim, pois só resolveria coisas internas naquele dia. Perguntou-me o que diria as pessoas. “Eu que sei...?! Minta.” Antes que entrasse em minha sala, o encostado do meu sócio aparece. Parecendo mais meu chefe, quis saber de tudo; por onde eu andei, qual o motivo do atraso, porque eu não havia ligado,... Após tantas perguntas, pedi que sentasse e o informei do meu interesse no rompimento da sociedade. “Não trabalho duro para ter você se escorando e pisando em mim. Eu sou a dona disso tudo. Você é mero figurante. Sua parte na sociedade é ínfima. E se for o caso, ponha preço nela e eu compro. Mas, se você tiver o mínimo de decência, não me cobrará nada.”. Ofendido, saiu porta afora. Foi-se então metade do peso da minha cabeça.

Sentada em minha cadeira passei o dia, buscando dentro de mim alguma resposta para a necessidade imensa de mudança. “Vá entender... só sei que é bom.”. Quando Ana bateu a porta a fim de avisar que iria almoçar, eu estava andando pelas curvas da lembrança recordando cada detalhe da noite anterior. Achar louca minha atitude de continuar naquele bar com Cecília, não me fazia arrepender-me de ter ficado. Lembrava de seu rosto, de seus olhos,... “Invasores demais...” de seu perfil bem desenhado. Por um instante quis imaginá-la vestindo roupas femininas. “Impossível.” De súbito, me repreendi por tanta admiração, por tanto interesse, por tanta vontade de sair de novo com ela. “Só me faltava essa...”. Na universidade quase tudo é permitido, porém, de tudo é feito. Eu, como tantas outras, tive meu momento lésbico não chegando ao ponto de dormir com uma menina, mas já havia beijado só para ganhar a aposta de beijar a menina mais bonita do curso. Não desgostei... Mas, não me sentia a vontade com aquilo. Minha paixão e desgraça sempre foram os homens. “Derrota...”. Cecília não era comum. Não me lembrava nem um pouco as sapatões da minha época, apesar da forma que vive. Ela inspirava, acima de qualquer coisa, saber quem era. E encontrar alguém que tenha plena consciência de quem é, é raro. “Se existe, achei.” Aquilo sim me fazia admirá-la. Perceber que ela tem a estabilidade de ser que eu não tenho, inquietou-me.

Antes que Ana me desse as costas e saísse, lhe pedi que achasse o número da escola de idiomas do andar de cima. Prontamente, o achou e o trouxe. Depois de trinta minutos de frescura diante do telefone, liguei procurando por ela. A infeliz da atendente quis porque quis me convencer a me matricular. Com tanta insistência... “Filha, eu falo dois idiomas fluentemente. Agora, chame a Cecília.”. Aquele desgaste todo só para ela me dizer que Cecília havia saído enquanto nós falávamos ao telefone. “Pena que não posso mais alegar forte emoção para justificar um homicídio.”- me lamentei. A minha grande frustração de não encontrá-la incomodou-me. “O que tá acontecendo e eu não estou vendo...?!”

Levantei da cadeira para esticar as pernas e aproveitei para admirar o trânsito frenético como de um formigueiro. Campainha toca. “As pessoas não almoçam?”. Pensei em não atender. Repensei a situação quando lembrei que meu futuro ex-sócio poderia estar negligenciando algum cliente. Aquilo poderia ser algum deles reclamando ou algo do tipo. Arrastei-me até a porta. Nisso, foi tempo suficiente para a pessoa desistir. Abri a porta e não havia ninguém. Exceto por uma rosa amarela na soleira com um bilhete.

Queria almoçar com você, mas não deu. A flor é pela noite de ontem. Pessoas singulares merecem reconhecimento.
Cecília.
É, eu não era a única a estar, de alguma forma, incomodada com tudo que aconteceu. Seria isso bom ou ruim?

4 comentários:

Leo disse...

Poemas e rosas... um verdadeiro gentleman nunca despresa o poder dessas duas coisas.... ;)

Continue assim!!

Comércio de Sonhos disse...

nossa... por mim, com dois capitulos ja é best seller kkkkkk

tá d+ campelo...
to adorando e no aguardo!!

Larissa Sampaio disse...

Muito bom os textos!São envolventes!

Larissa Sampaio disse...

A carol me passou o link do seu blog!E adorei!